segunda-feira, 18 de maio de 2015

Acesso à biodiversidade, ou Acesso à floresta

* Ecio Rodrigues

No momento político atual, em que se observa uma queda de aceitação do governo federal, parece que existe uma combinação: os senadores representam “o Bem”, os deputados, “o Mal”, enquanto o governo se faz de vítima ou de indefeso, à espera do fim da marola de impopularidade.
Uma pantomima desempenhada com maestria durante, por exemplo, a votação do projeto de lei que regulamenta o acesso à biodiversidade, ou ao patrimônio genético – enfim, o projeto que dispõe sobre a exploração dos recursos da diversidade biológica. Não seria exagero afirmar que esse projeto se reveste de importância inigualável para uma região como a Amazônia, cuja vocação florestal tem sido estudada e reverenciada desde os tempos coloniais.
Fácil entender. Se a única saída para consolidar uma ocupação social e econômica na Amazônia é a exploração sustentável da diversidade biológica, encontrada sobretudo no ecossistema florestal, a promulgação de um regulamento para estipular as diretrizes pelas quais essa exploração se concretiza é prioridade absoluta – uma prioridade, diga-se, que se impõe há pelo menos 30 anos.
Infelizmente, todavia, o estabelecimento duma economia ancorada na riqueza florestal sempre perdeu em urgência para temas bem menos relevantes. Cite-se a premência com que o Congresso e o governo aprovaram a despropositada prorrogação, para 2073, do prazo de vigência da Zona Franca de Manaus.
Os parlamentares que discursaram sobre o acesso à biodiversidade acertaram ao fazer três relevantes constatações. Primeiro, que a Amazônia é a região que mais tem urgência nessa regulamentação; segundo, que se trata do mais importante objetivo estratégico com o propósito de gerar riqueza na região, ao tempo em que afasta a floresta do desmatamento; terceiro, que o conhecimento que as populações tradicionais detêm sobre as plantas aproveitadas deve ser remunerado.
Passados os discursos, na prática as coisas não são bem assim. Os senadores, “do bem”, criticando o projeto aprovado pelos deputados, modificaram-no com trivialidades como a substituição do termo “agricultor tradicional” por “agricultor familiar”, e com exigências como a obrigação de associação entre as multinacionais e a indústria nacional (praticamente inexistente no campo da biotecnologia) na pesquisa e exploração das espécies.
No retorno do projeto à Câmara, os deputados, “do mal”, fizeram o esperado: mantiveram as trivialidades e rejeitaram a confusa exigência de caráter xenófobo.
Na verdade, o mais importante, o sentido principal do regulamento (que os deputados recuperaram) é permitir o acesso aos recursos da diversidade biológica às empresas que possuem as condições necessárias – leia-se especialistas e equipamentos – para realizar a exploração dos recursos da biodiversidade e dessa forma melhorar a dinâmica econômica local.
Com a aprovação do projeto, que será ainda analisado pelo Executivo, supera-se toda uma gama de entraves decorrentes de histerias com a biopirataria, de preciosismos com as populações tradicionais e de suscetibilidades em relação ao capital internacional. Esses entraves contaminaram de maneira absurda a legislação instituída em 2001.
A completa ausência, na região, de empresas dedicadas ao uso biotecnológico das espécies florestais amazônicas é a prova cabal da impraticabilidade do regulamento anterior, em vigor há 15 anos.
Espera-se que, diante da nova legislação, o Centro de Biotecnologia da Amazônia, CBA, passados mais de 12 anos desde a sua criação, finalmente se torne a prioridade prometida.
O fato para além dos discursos é que o CBA, objeto de exaltação pelos políticos, até hoje não entrou em funcionamento.


* Professor Associado da Universidade Federal do Acre, Engenheiro Florestal, Especialista em Manejo Florestal e Mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná e Doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

domingo, 10 de maio de 2015

Terceirização no setor florestal na Amazônia

* Ecio Rodrigues

Ainda que setores ditos progressistas da política nacional, com certo apoio da mídia, tenham considerado como retrocesso a eleição, para a presidência da Câmara, de um representante da bancada evangélica (cujas posições são muitas vezes questionadas pelos movimentos ligados aos direitos humanos), uma coisa é inegável: a produtividade dos parlamentares aumentou visivelmente.
Ao que parece, um pouco de personalidade e a recusa em manifestar subserviência na relação com o governo federal foram o bastante para conferir eficiência à atuação do presidente da Casa do Povo. Sem receio de contrariar o Executivo, os deputados estão sendo levados a discutir projetos polêmicos, antes engavetados por orientação do governo.
Como é o caso do projeto de lei que regulamenta a terceirização de serviços. A despeito do fato comprovado pela ciência econômica de que a terceirização decorre da especialização do trabalho – que por seu turno é ponto inexorável, ou seja, vai ocorrer por ser inerente ao sistema capitalista – parece haver certa relutância da sociedade em aceitá-la.
No âmbito da atividade florestal exercida na Amazônia não é diferente. Todavia, a relutância em aceitar a terceirização, nesse caso, importa em manifesta contradição, que se amplia ante a pouca ou nenhuma informação disponível sobre esse setor econômico crucial para a economia regional.
Acontece que os procedimentos relativos à derrubada de uma árvore no interior da floresta amazônica; ao processamento primário dessa árvore para o fim de transformá-la em toras; ao arraste das toras aos pontos de estocagem; ao transporte das toras até uma indústria de processamento – todos esses procedimentos, enfim, encerram uma grande quantidade de operações.
Essa lista, evidentemente, não se encerra aí, e cada um desses procedimentos requer a atuação de profissionais qualificados e, portanto, especializados. A lógica é: quanto maior a especialização, maior será a eficiência com que cada operação será realizada.
Por conseguinte, quanto maior essa eficiência, maior será a produtividade de cada operação, e menor (talvez esse seja o ponto mais importante) será o preço final a ser pago pelo consumidor. Significa dizer que uma maior especialização do trabalhador representa a entrega de um produto de melhor qualidade e menor custo para o consumidor.
Sem embargo, chegar a um nível tal de especialização que se traduza em eficiência, maior qualidade e menor preço é tarefa impraticável na alçada de um único empreendimento. Ainda mais levando-se em conta que parte das operações acontece dentro da floresta, onde as condições de trabalho são, para dizer o mínimo, muito complexas, e que a industrialização da madeira ocorre mediante o emprego de máquinas pesadas e difíceis de operar.
A correlação entre a especialização do trabalhador, a terceirização e o preço final do produto parece ser o ponto nevrálgico para compreender a importância da primeira e a inevitabilidade da segunda.
Para resumir, sem querer causar controvérsia: no que se refere à atividade florestal na Amazônia, não há especialização sem terceirização – simples assim. E para ser ainda mais incisivo, a terceirização florestal se processa desde a função elementar de abrir picadas (desempenhada pelo chamado “picadeiro”) até o serviço especializado exercido pelo engenheiro florestal.
Para o cluster florestal da Amazônia, a especialização do trabalhador e a decorrente terceirização do trabalho serão, sempre, as mais amplas possíveis.


* Professor Associado da Universidade Federal do Acre, Engenheiro Florestal, Especialista em Manejo Florestal e Mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná e Doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Contaminação conceitual da extensão rural na Amazônia

* Ecio Rodrigues

Os profissionais envolvidos com a extensão rural na Amazônia tentam, mas não conseguem estabelecer um procedimento de atuação que se diferencie das condutas que, embora ditas de extensão, não passam dos velhos expedientes populistas sempre focados na criação de uma associação de produtores, na destinação de um trator a essa associação e na realização de um evento para a entrega do trator.
Definitivamente, extensão rural não é nada disso.
Ainda que eventualmente um programa de extensão rural, em algum momento, fomente a compra e entrega de tratores a associações de produtores, esse tipo de objetivo nunca – nunca! – poderá orientar a extensão rural, sob pena de convertê-la em mero assistencialismo.
Pior ainda (o que quase sempre acontece), o assistencialismo pode se trasvestir – e desse modo se justificar – em engajamento político. Esse disfarce surge quando a estrutura estatal que promove a extensão rural se impregna por um ideal socialista que, se é que existiu, há muito se encontra superado.
Palavras esdrúxulas como “empoderamento” costumam significar, na dita utopia socialista, a possibilidade duma comunidade adquirir independência financeira, técnica e política, num patamar tal que lhe conferiria condições de ter controle sob todos os elos da cadeia produtiva.
Algo utópico, ou impossível, no âmbito do sistema capitalista. Mas o empoderamento da comunidade certamente agrada muito quando envolve a obtenção de veículos e equipamentos e a realização de eventos festivos.
Dizendo de forma singela e objetiva (embora objetividade não seja exatamente uma característica dos defensores da extensão rural engajada), só haverá extensão rural se, e somente se, o conhecimento científico (embasado ou não no conhecimento empírico) lograr fazer chegar aos produtores um produto novo ou um jeito novo de produzir o mesmo produto.
Há quem chame esse produto novo (ou esse jeito novo de produzir) de inovação tecnológica – o que significa afirmar, sem ressalvas, que inovação tecnológica e extensão rural sempre caminham juntas.
Mas não é inovação tecnológica a fundação de uma associação, como também não o é a doação de tratores e muito menos a organização de um churrasco para a entrega dos tratores.
Continuando no exemplo do trator. Embora a aquisição desse equipamento propicie a mecanização do processo de escavação do solo para a produção de arroz, feijão, milho e macaxeira (o que decerto é muito importante), não há nenhuma inovação tecnológica aí, ainda que anteriormente o produtor fizesse uso da enxada.
Os mesmos produtos continuarão a ser produzidos da mesma maneira primitiva, sendo o trator o prosaico resultado dum assistencialismo por sua vez decorrente da extensão engajada.
Contudo, como esses argumentos estão longe de encerrar alguma unanimidade, no final das contas não é tarefa fácil definir o que pode ou não ser considerado como extensão rural na Amazônia. O engajamento político para a criação de associações é apenas uma das facetas duma contaminação conceitual complexa e de difícil superação.
Enquanto isso, a produção rural continuará assentada no cultivo dos básicos arroz, feijão, milho e macaxeira, realizada sob primitivismo tecnológico e à custa de elevados impactos ambientais oriundos de práticas nefastas como desmatamentos e queimadas.
E a extensão rural continuará a ser responsabilizada por não alterar essa realidade. Uma extensão que jamais aconteceu na Amazônia.


* Professor Associado da Universidade Federal do Acre, Engenheiro Florestal, Especialista em Manejo Florestal e Mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná e Doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.

O triste fim da Residência Florestal no Acre

* Ecio Rodrigues

No Acre, a Secretaria Estadual de Florestas foi extinta em 2012, sem nenhum argumento plausível que justificasse uma decisão de tamanha importância e impacto no meio social, econômico e ecológico local.
A partir desse episódio lamentável, medidas vêm sendo tomadas no sentido (nem sempre explícito) de diminuir a importância da política florestal em relação à política de produção agropecuária – bem mais pecuária que agrícola, é claro.
Transferiram-se as atribuições atinentes à política florestal para a esfera dum departamento inexpressivo e insignificante, vinculado ao que foi considerada uma supersecretaria – que por seu turno passou a cuidar dos temas da indústria (desde usinas de borracha até fábricas de produtos de plástico), do comércio e da produção primária. Mais abrangente, impossível.
Diante de uma gama tão ampla de competências, a Sedens, como ficou conhecida a supersecretaria, mostrou-se um paquiderme (para usar uma expressão da administração pública da década de 1970), sem nenhuma chance de funcionar de maneira eficiente.
Para reduzir o tamanho do paquiderme e obter-se alguma operacionalidade, as atribuições de política florestal foram mais uma vez transferidas, desta feita para a Secretaria de Meio Ambiente, Sema. Nada mais inconsistente por uma razão simples: inaptidão administrativa para atuar em política florestal.
Entenda-se por inaptidão o distanciamento temático entre as competências da Sema e o setor da produção florestal. Numa comparação grosseira, é como se o Ministério do Meio Ambiente se fundisse com o da Agricultura: embora ambos atuem na área rural, o primeiro opõe-se à produção primária, confronta-a, enquanto o segundo depende dela.
Para explicar melhor. A relação entre a política florestal e a Sema ocorre apenas no âmbito do problemático processo de licenciamento, no qual os empreendimentos florestais (o manejo florestal para produção madeireira, por exemplo) se submetem às regras muitas vezes abstrusas que lhes são impostas. Mas está na índole da Sema dificultar esse licenciamento.
Enquanto a política florestal, por princípio, busca aumentar a quantidade de caminhões que transportam toras pelas rodovias, a Sema se sobressalta a cada caminhão que sai carregado do mato.
No meio dessa estratégia para reduzir a importância da política florestal, o Programa de Residência Florestal, destinado a introduzir o engenheiro florestal no mercado de trabalho e torná-lo um profissional mais preparado para gerenciar as florestas do Acre, foi sumariamente extinto. Único na Amazônia, o programa fornecia bolsas com duração de 18 meses para recém-graduados.
Depois de formar mais de 50 residentes, distribuídos em três turmas, todas mantidas com recursos financeiros originados da cooperação internacional (já que as bolsas não eram financiadas pelo tesouro estadual), o programa, simplesmente, acabou. Novamente, nenhuma justificativa razoável foi apresentada aos envolvidos com o setor florestal.
Pode ser que o fato de o Acre ter se posicionado entre os estados que apresentaram as maiores taxas de desmatamento em 2014, com três municípios se revezando entre os dez que mais desmataram na Amazônia, não tenha nenhuma conexão com a indiferença governamental a respeito da política florestal. Mas pode ser que tenha.
Num futuro cada vez mais próximo, a valorização econômica das áreas de florestas será uma realidade. Infelizmente, poderá ser tarde para o Acre.


* Professor Associado da Universidade Federal do Acre, Engenheiro Florestal, Especialista em Manejo Florestal e Mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná e Doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.